terça-feira, 22 de setembro de 2009

Do "livro dos plágios" IV

"Durante muito tempo acreditei que em todas as gerações há umas tantas almas, chamemos-lhes felizes ou desgraçadas, que não nasceram para se integrarem, que vieram a este mundo meio separadas, sem uma ligação forte a uma familia, a um local, a uma nação ou a uma raça; que pode até haver milhões, biliões de almas assim, talvez tanto de integrados como de não integrados; que, em suma, esse fenómeno pode ser uma manifestação da natureza humana tão "natural" como o seu oposto, mas que ao longo da história dos homens tem sido frustrado por falta de oportunidades. E não só: porque as pessoas que dão mais valor à estabilidade e que temem tudo o que é transitório, incerto, mutável, construiram um poderoso sistema de estigmas e tabus contra o desenraizamento como força destabilizadora e anti-social e assim conformamo-nos a maior parte das vezes, fingimo-nos motivados por lealdades e solidariedades que realmente não sentimos, escondemos as nossas identidades secretas sob a pele falsa das identidades marcadas com o selo de aprovação. Mas a verdade escapa-se nos nossos sonhos, sozinhos na cama (porque todos estamos sós na noite, mesmo quando não dormimos sós), elevamo-nos e pairamos, fugimos. E naqueles sonhos acordados permitidos pela socieade, os nossos mitos, a nossa arte, as nossas canções, celebramos aqueles que não pertencem ao grupo, os diferentes, os for-da-lei, os excêntricos. Aquilo que proibimos a nós mesmos, pagamos bom dinheiro para admirar num teatro, ou num cinema ou nas folhas de um livro. Nas nossas bibliotecas, livrarias ou locais de diversão fala-se verdade. O vadio, o assassino, o rebelde, o ladrão, o banido, a máscara. Se não reconhecêssemos neles as necessidades que não podemos preencher, não os inventariamos vezes e vezes sem conta, em cada sitio, em todas as linguas, em todos os tempos, a cada passo.Assim que houve barcos, corremos para o mar, atravessando oceanos em barquinhos de papel. Assim que houve automóveis, fizemo-nos à estrada. Assim que houve aviões, voámos como setas, até aos cantos mais remotos do planeta. Agora sonhamos com o lado escuro da Lua, as planicies rochosas de Marte, os aneis de Saturno, as profundezes interestrelares (...). Procuramos a urdidura do espaço, a demarcação dos limites do tempo. E é esta espécie que vive na ilusão de que gosta de ficar em casa e ter - como é que se diz? - laços. Esta é a minha opinião. Ninguém é obrigado a aceitá-la. Talvez não haja assim tanta gente como nós, ao fim e ao cabo. Talvez sejamos de facto desestabilizadores e anti-sociais e devêssemos ser proibidos. Todos temos direito às nossas opiniões. Eu só digo: Durmam bem, queridos. Durmam bem e bons sonhos."

In "O Chão que ela pisa", Salman Rushdie

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